segunda-feira, outubro 31, 2005

“A Metamorfose do meu Eu Singular”

Há tempos estava eu num determinado espaço e ouvi um homem, já de idade avançada, a comentar o estado em que vivia aglutinado há uns tempos. Dizia ele, de que tinha passado toda a sua vida a pensar na reforma. Enquanto trabalhou, durante toda a sua vida, não tinha parado de pensar no dia em que a partir de «amanhã» teria o seu descanso. Houve um dia em que esse descanso finalmente chegou, porém, ao contrário do que ele tinha pensado ao longo de toda a sua existência, esse dia não lhe trouxe o que ele queria, muito pelo contrário. Esse dia, bem como os outros que se seguiram, trouxeram-lhe, isso sim, angústia e acima de tudo um tédio dilacerante. Dizia ele, no tempo presente, de que a reforma não lhe trouxe nada. Tinha passado a vida toda desejando aquilo, e quando aquilo lhe chega vê afinal que o fim do trabalho seria indubitavelmente o fim, ou praticamente, da sua existência. Os seus dias eram agora passados em frente ao televisor ou a ler o jornal. Ir à praça, ir à rua, ir à taberna, ficar em casa. Era assim a rotina deste homem, que ajudou a construir o seu mundo, meu mundo, o teu mundo. Olhava com angústia, sentando num banco, todas as pessoas de manhã a ir cumprir a sua rotina, seus horários. Camionetas, corridas, pessoas, buzinas, barulhos, lusco fusco, gritos, choros, ambulâncias, morte, vida. Ele via, ele via tudo. Via também que a cada dia sentia-se cada vez mais morto, cada vez mais estagnado, e, de que, nada valia apena. A maneira mais fácil de ajudar este homem seria dizer-lhe, e por que não fazer algo? Ocupar o seu tempo? Ajudar alguém? Está «velho» mas não incapaz, ainda pode fazer algo. Quer? – era a maneira mais fácil, sem dúvida. Mas que injusta. Que direito temos nós de mandar hipóteses sobre o que fazer perto do «fim» se nem as colocamos ou fazemos no longo caminho que percorremos até ao fim? Que idiotice tentar entender a vida de um «velho» se a maior parte de nós nem sequer pensa na vida que tem. Limita-se a vivê-la maquinalmente. Na verdade nem vivemos. Sobrevivemos. Isso sim. Sobrevivemos, arrastamos o nosso corpo, peso morto, de uma existência ao longo dos anos. Arrastamo-nos atrás dos outros, atrás de tudo, atrás de coisas. Vivemos e morremos em torno da luz. Andamos a viver e a morrer à volta de luz, do Sol e da Lua. Ganhamos horas, perdemos horas. Mais um, menos um objectivo. Sobrevivemos. Não vivemos. É impossível viver hoje em dia. Ninguém vive. Não.
Há pessoas que vivem. Abençoadas as que vivem e podem viver. Ter tempo, ter tempo para poder usufrui-lo de forma bem empregue e poder gastá-lo de forma correcta. O tempo é uma dádiva, poder ter tempo hoje em dia afigura-se como o melhor da nossa vida. Não é o dinheiro. Para que serve o dinheiro? Estudas e trabalhas para tê-lo. Para quê? 20 contos não valem o mesmo que valiam ontem e não vão valer o mesmo amanhã que valem hoje. O teu carro não vale o mesmo amanhã que vale hoje. O que é o dinheiro? É papel ou é aquilo em que aplicamos. É material. Afinal vives da matéria ou do espírito? És feliz? O velho é feliz? Olha à tua volta. Quem é que é feliz? Como é que são felizes? Felizes por que razão? Será que eles sabem efectivamente o porquê de se afirmarem «felizes»? Às vezes «felizes» são «infelizes». Desconhecem as linhas que pisam e que os fazem viver. Tu conheces as tuas? Duvido. Já pensaste nelas? Já pensaste o porquê de viveres o teu dia-a-dia? Não, não quero te mates nem te sintas mal. Se nunca pensaste não o penses agora. És mais um. Um daqueles que vive sem pensar por que vive. Olha à tua volta e tenta ver. Não simplesmente olhar, mas «ver» efectivamente. O que vês? Fecha os olhos e vê a tua vida diante deles. Desde a mais pequena imagem até ao presente. O que vês? Gostas? Não? Sabes o porquê de gostares ou não, ou simplesmente sabes que sim? Olha à tua volta. Vê a tua vida. Vives por ti, ou pelos outros? Pensa bem, vê bem. Não és escrava/o dos outros? Como te vestes? Como se sentes? Como ages? Como pensas? Não és igual? Fruto de uma corporação capitalista qualquer? Fruto de estudos de mercado independentes? Então não vives, sobrevives. És igual. És mais uma pessoa. És igual. És banal. És vazia. Que direito tens tu de falares sobre o destino final de um «velho» quando tu, toda a tua vida nem viver sabes. Nem sequer sabes o que é «viver». Não «vives». Tu sobrevives. Arrastas-te. Vives sozinho/a. Vives em mundos paralelos. Quando estiveres no comboio, numa camioneta, ou qualquer lugar rodeado de pessoas, olha à volta. O que vês? Não, o que vês mesmo, além, para lá, dentro dos olhos, além rosto e corpo. O que vês? Não sabes. Desconheces. Tu não conheces nem as pessoas com que vives. Nem elas a ti. Os teus pais não te conhecem, porém, foram eles que te criaram. Tens os teus amigos. Teus sonhos, tuas frustrações, teus medos. Não imaginam que tens mágoas. Tens dores. Tão novo/a e já tens o corpo cheio de chagas. Tens desejos. Desejas sexo. Estás sentada à mesa e nem imaginam de que fizeste um broche ao teu namorado ontem à noite. De que ele te fez um minete. De que lhe bateste uma. Os teus pais olham, mas não conseguem ver. Tu olhas para eles. Não pensas. Não queres pensar. Queres é tudo pago e as coisas na mão. Eles não sonham, tu pensas. Eles não desejam. Eles não querem. Sexo? Nem pensar. Eles já não fazem. Tua mãe quer, deseja. Teu pai também. Mas já estão longe um do outro. Já não vale apena. Foram consumidos. Não vivem, sobrevivem. Não falam, não vale apena. Como eles, também tu. Não vives e ainda podias mudar o mundo. Sobrevives. Até quando?


Sérgio P. ( morreste-me.blogspot.com )
29 de Outubro de 2005
16:00

PS: Obrigado por publicares André.
Abraço Senil.

4 Comments:

At 3:00 da manhã, Blogger o monstro said...

Eu sinto-me triste quando penso como um normal.

 
At 10:48 da manhã, Anonymous Anónimo said...

eu não quero ser normal. sei que pareço demasiado banal. mas aquilo que eu sou não é isso. recusar-me-ei. quando me conformar, então morri para mim. significa que desisti. é assim que eu vejo as coisas agora.

mas, obviamente, o texto do Sérgio é acutilantemente verdadeiro...
Parabéns pla escrita, uma vez mais, e pela publicação aqui!

Bjs aos 2

 
At 11:29 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Não querer ser normal, é ser normal. Ou seja, no fundo, todos nós, um dia mais cedo ou mais tarde, acabamos por querer ser diferentes dos outros, portanto é normal querermos ser diferentes.Ou seja, não querendo ser normais, estamos a ser normais.
A questão está na definição de normal- ou por isomorfismo - frequente.tudo aquilo quanto tu possas tentar fazer de diferente na realidade nao é diferente. Pelo simples facto de tu não teres poder de escolha sobre nada, tens sim um aparente poder de decisão.
Vamos a ver:
Todas as tuas decisões são tomadas
de acordo com decisões anteriores, ou seja, de acordo com a tua personalidade. sendo essa estrutura uma coisa construida, cada decisão que vais tomando, vai sendo influenciada pela decisão anterior. Portanto, apartir do momento em que te tornas-te aparentemente consciente, determinaste toda a tua vida, pois todas as tuas mais basicas decisões serão tomadas com base nessa primeira decisão.
Acontece que essa primeira decisão aparentemente consciente foi tomada com base nos teus primeiros tempos de vida com base nas mensagems passadas pelo meio que te rodeia e pelas pessoas que te rodeiam. Uma vez mais essa ambiente foi gerado por outras decisões....atingindo-se no final da cadeia uma causa primordial.
Nao interessa aqui qual a causa..interessa sim que tu está de facto limitado. No entanto, como acabei de mostrar, tens a capacidade de perceber que estas limitado.
O resultado disto é que portanto, a unica coisa que podes de facto fazer é sobreviver. Não existe outra escolha possivel.
Podes tentar enganar-te e camuflar as coisas com flores bonitas ás pintinhas,escondendo esse facto, mas no fundo, será isso..estás a escondê-lo.
E atenção..não se trata de acreditar que isto assim acontece..é um facto, por todos constatável.

 
At 3:13 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Gostei de ler isto! sempre me quetionei sobre o porque de estarmso aqui, e porque é que as coisas tem de funcionar assim?!!afinal de contas, nos vivemos para morrer certo? entao andamos a lutar para ter isto e aquilo,para um bom emprego,um bom carro bla bla.. tudo uma serie de cenas materiais, mas na realidade chegamos a um ponto em que nada de material nos pode fazer feliz! afinal nos nascemos da natureza, e o que fazemos a todos os dias é destruila.. o que eu queria mesmo dizer, é que visto bem as coisas nos nao vivemos, sobrevivemos... sera que a morte nos leva para um mundo melhor? talvez sim, talvez nao.. sinceramente acho que ninguem é normal! e quem se acha normal so porque age e pensa da maneira dita normal, é porque apenas esta a tentar ser normal! pois todos nos temos as nossas pancadas!mas num mundo de merda como o nosso quem é que pode ser normal?
acho que tem de haver um equilibrio.. e para tal, tem de existir sempre duas coisas opostas.. tal como o bem/mal, amor/odio, tristeza/ alegria, Frio/calor... daí nos nos passarmos da cabeça, pois acho que se pudesse ser, uma pessoa teria sempre a felicidade, pois quem é conhece é com revolta que passa a viver na tristeza...

 

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